terça-feira, 6 de novembro de 2012

A balada dos gatos agonizantes

Miavam como crianças, aos pares ou trios, por tantos. Cigarras queriam confundir o inquestionável. Matariam gatos. Ou os gatos morreriam por si. Nem os bêbados costumazes serviriam de testemunhas. Quem ouvia pensava sem dizer que era morte suja, prolongamento de morte, atraso proposital, tortura.


Que fariam os gatos? Que fariam com eles? Que teriam feito?

( mieouu)

Assim. Rasgando a vizinhança, que ignorava o choro. Choro agudo, alto, como miado de alegria. Mais agudo. Da alegria à agonia são poucas letras e poucos tons. A vizinhança tentava ignorar. A noite parindo as ignorâncias.

(mieouu)

Uma janela acende, um curioso acorda. Sacode o sono, vai à janela. Que diabos! Se continuar vou lá. Lá onde? Outro lado, o das ignorâncias. Gatos miando sofrendo, desexistindo. A janela desiste, miados lejos, gatos culpados, amanhã pego às sete.

Dorme com o sossego de não interromper o que não lhe apetece. Melhor fixar nas cigarras, zumbidos eternos de vidas efêmeras.

( miii miii) quase desistem os malditos, terminem isso pelamordedeus, antes que... Antes que alguém interfira.

Silenciem, nem que morram! (arranhões, mieou, poucos latidos)

Enfim,durmo.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Tentativa de discussão matemática

-Eu te amo...


-Hm, beleza. Eu também te amo. Também amo o Eddie Vedder e isso não faz diferença na vida dele ou na minha. Amor não faz diferença.

-Grossa. Quer dizer que agora o Eddie Vedder faz diferença e eu não?

-Não sou grossa, acabei de dizer que te amo. Não disse que você não faz diferença, disse que amor não faz diferença.

-Não adianta discutir com você, viu...

-Dependendo dos argumentos não adianta mesmo.

-Ok, você venceu. Quer discutir algo? Sobre nós, sobre o Eddie, sobre o amor?

-Quero! Você não entende nada. Estamos no meio dos três assuntos.

-Estamos no meio de uma briga, baby, e eu só quero resolver.

-Claro, eu também.

-Nesse tom sarcástico, não parece.

-Você de novo. Não estou sendo sarcástica, estou descrente. Você não entende nada.

-Precisa mesmo disso? Me desculpa e pronto?Consegue ser menos chata?

-Viu? Só o Eddie mesmo... Você pisa na bola e quer resolver as coisas com ‘eu te amo’ e ‘você é chata’.

-Dá pra parar de colocar o Eddie Vedder no meio? Nesse momento, eu não te amo. Feliz?

-Muito! Viu? E a vida continua igual, você me amando ou não.

-...

-A gente nem precisa se amar, precisa ser útil na vida do outro. Amor é acessório, futilidade, capricho.

-Amor é desejo de estar junto, não? Você disse que me ama...

-Significa apenas que você me agrada, que vejo em você algumas coisas que podem melhorar minha vida mas não são essenciais. Estou disposta a passar um tempo ao seu lado, isso tem a ver com praticidade, isso não é amor. Veja: tenho em casa uma escova de dente, ela é útil diariamente. Não quero escovar dente o dia inteiro, não a amo.

-E isso quer dizer que....?

-Nada, esquece!

P.S.:Alguém tem o telefone do Eddie Vedder?

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Diarista

‘Eu não preciso que você seja fiel. Preciso que você seja leal. ’


Desligou a televisão, deixando uma mulher colorida e peluda olhando com ternura para um gordo de bigode. Não entendia muito sobre amor televisivo. E mesmo pobre, não era peluda. Parou em frente ao espelho oval e passou  um batom cor-de-boca que competia em falta de graça para sua calça social sem corte e sua bata de um azul que merecia ser confundido com cinza. Prendeu o cabelo ondulado num rabo baixo e colocou a aliança que havia tirado antes da faxina. Hora de pedir o pagamento à patroa.

‘Dona Fernanda, vou indo. ’

‘Tudo bem, querida. Vou buscar seu dinheiro. Quinta que vem você volta, né?’

Não sabia bem o motivo, apenas percebia que a patroa andava deprimida. Aprendera esse termo e seu significado com Dona Fernanda triste e pensativa. O que a deixaria assim, ser leal e não fiel? Bah, a vida era suficientemente complicada sem essas coisas, e se pensasse nisso poderia ficar deprimida, também.

Sorriu, quase que debochada. Devia ser preciso dinheiro para ficar deprimida. Dona Fernanda deixava de se arrumar, de fazer as unhas, de comer... Nos dias ruins, não saía do quarto e ainda fumava. Jesus misericordioso que a livrasse da depressão. Neiva não podia perder tempo dentro do quarto, perdia no ônibus que ia de Venda Nova ao Centro e isso já contava tempo perdido o bastante.

Sobre fidelidade, quando noiva uma vez quis beijar um vizinho. Desistiu porque era pecado e depois disso nunca teve disposição ou criatividade para infidelidade. Quanto ao marido, bom com ela não era. Ainda que fosse fiel, diferença pouca. Ao menos passava o final de semana em casa e não aparecia bêbado na frente dos filhos. Felicidade era isso. Ver os filhos crescendo sem entender de fidelidade e lealdade. E sem depressão.

Dona Fernanda voltou com uma nota de cinqüenta e outra de vinte. ‘Combinamos sessenta, mais passagem.’ ‘Obrigada, dona Fernanda.’ ‘São dois ou é um só?’. ‘São dois, mas pego no centro com uma colega, não tem perigo. ’ ‘Graças a Deus. ’ ‘Graças a Deus.’

‘Dona Fernanda, que filme era o que estava passando?’ ‘Frida Kahlo, sobre uma pintora.’ ‘Me empresta para eu ver com meu marido no final de semana?’ ‘Acho que vocês não vão gostar, mas empresto. ’

Deixou o serviço com o DVD dentro da bolsa. Teria de pedir o aparelho de DVD emprestado à sua cunhada, pensou. O marido brigaria por ter de ligar o aparelho e por ter de pedir emprestado. Brigaria pela escolha do filme e por ter de perder seu tempo assistindo-o. Ela, enfim triunfante, inflaria o peito: ‘Você me deprime. ’

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Feriado nacional




A revolução não será televisionada. O amor ao próximo tampouco. Hoje eu desejei ser jornalista-chefe do Estado de Minas. A manchete amanhã seria - em letras garrafais: 16 de julho: aniversário do Seu Antônio*. Mas não. Essas coisas insignificantemente bonitas não estarão nos jornais.

Seu Antônio tem 73 anos completados hoje e está há 115 dias internado . Do interior da Bahia, idoso e com uma visão ruim, nos passa a impressão de que não entende o que acontece ao seu redor. Acompanho o caso há 15 dias. Hoje ao abrir o prontuário, descobri que era aniversário dele. Encontrei-o já acordado e sereno.

-Bom dia, Seu Antônio!

-Bom dia, minha filha!

Seu Antônio responde com educação e desânimo de quem dormiu no próprio travesseiro quatro meses atrás.

-Uai, hoje é aniversário do senhor?

Pede que eu repita a pergunta e responde desinteressado, está numa idade em que datas são irrelevantes.

-Não me lembro direito, minha filha, mas acho que é em janeiro...

Volta o olhar para outro canto e fica em silêncio. Eu prometo conferir e contar se está ou não completando mais um ano. Estava, realmente. Nasceu numa época em que o registro de nascimento era muito difícil e as crianças eram registradas em datas aleatórias. Não faz mal. Espalhou-se na enfermaria que hoje é aniversário de Seu Antônio.

Hospital, correria. Passamos por vários andares, vimos diversos pacientes, discutimos diversos casos. Para visitar uma outra paciente, voltamos à enfermaria onde estava Seu Antônio. Espiei pela porta, ele estava com a fisioterapeuta, obediente em seus exercícios. Uma enfermeira então veio nos convidar para cantar parabéns para ele. Percebo que há um movimento anormal no andar. As enfermeiras e a fisioterapeuta se olham, segredam pelos olhares.

Obedecendo a um olhar da enfermeira, a fisioterapeuta o leva pelo corredor a uma salinha que serve para reuniões e como copa. Lá nos esperam dois bolos. Uma festa de aniversário para Seu Antônio! A equipe de enfermagem, a fisioterapeuta, os médicos, os alunos e o paciente, todos reunidos no momento de maior carinho que presenciei. A enfermeira explica a ele que vamos cantar parabéns.

-Tudo bem, minha filha.

E abre um dos seus sorrisos despretensiosos, humildes – e que inundam!

Sopra o isqueiro, senta-se em silêncio e come como se estivesse sozinho ali. Parece não entender o momento, a homenagem. Pode ser que nunca tenha vivido um aniversário nos nossos moldes.

Fico abismada com a grandeza do momento. Nunca vi algo tão bonito, carinho altruísta, cristão. Minha trajetória de cinco anos na faculdade teve hoje seu auge. Sentido integral de cuidado, de dedicação. Deveria estar no jornal, deveria ser feriado... Que sirva ao menos para que eu dê todo o meu carinho a quem quer que precise!

*Seu Antônio não se chama Antônio. Troquei o nome por uma questão ética. Caso alguém queira ter o privilégio de visitá-lo, melhor correr porque ele terá alta logo- para comemorar com sua família.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Bilhetinho azul

   
Olha, fui embora. Não dormi essa noite. Numa das tantas horas, olhei para você feito criança, encolhido e tranquilo ao meu lado e resolvi ir de uma vez. Melhor assim, sem despedidas, sem novas promessas, sem 'fica!', sem mais nem menos. 
    Não tenho o que explicar. Tô indo e pronto. As minhas chaves tão com o porteiro. Deixei os livros e as roupas, se quiser pode dar para doação, todo domingo recolhem no São Vicente. As suas roupas que estavam na máquina eu pendurei. Deixei um envelope na mesa da copa com minha parte do aluguel e um pouco a mais, até você arrumar alguém para dividir. O documento da moto tá na sua carteira. Tem resto da pizza de ontem na geladeira, não deixa de comer. Meu telefone tá na sua cabeceira, pode vender e ficar com o dinheiro. 
    Não precisa me procurar. Não estarei me escondendo nem te esperando. Não adianta perguntar pra Lu que ela não sabe. 
    Só acho que eu e você já deu, entende? Se fosse para ser bom já teria sido. Foi coisa de solidão, de impulso mesmo. Eu sozinha, você sozinho. Solidão compartilhada não é companhia, entende? Sei que não.  
    Você é um cara bacana. Talvez devesse beber menos , talvez roncar. Sempre achei que ressonar é coisa de viado. Não usa mais aquele tênis branco com o furo do lado,viu?  
  Até pensei em ficar e conversar, mas olhando bem pro quadro que compramos juntos, percebi a incongruência disso tudo. É horroroso, eu não concordaria com um quadro desses se a parede fosse só minha. Amor é isso, a gente fica colocando o que não gosta na nossa parede, é ridículo. Nunca te disse: odeio cubismo. Poesia concreta até vai, mas cubismo? 
    O cachorro fica porque nunca gostei dele. Tô levando o CD do Eddie Vedder que é para chorar melhor.