terça-feira, 15 de junho de 2010

A atéia

Saiu do hospital às duas em ponto, lembrou que o bandejão estaria fechado. "Droga-o almoço por aqui é caro.". Fazer o quê, essa aula na hora do almoço deixava sua tarde livre, e ela quase nunca a usava para estudar mesmo. Resolveu andar mais para o centro da cidade, por lá encontraria um bom PF (oba,ovo!) custando uns cinco reais. Dobrou numa rua qualquer (Bahia?Tupis?) e subiu até o primeiro restaurante que encontrou, as portas estavam se fechando.Só então reparou na estranha quietude da cidade, estava tudo silencioso demais para um dia útil, nada de confusão de carros, motos e pedestres. Dirigiu-se a um rapaz de avental- devia trabalhar no restaurante.
-Moço, não tem como eu almoçar não?- falou com a voz doce, usando o maior charme possível a alguém faminto.
-Desculpe, estamos fechando, é tarde.-respondeu o insensível, quase ríspido.
-Ah, tudo bem. Onde fica a lanchonete mais próxima?
-Olha, você pode até andar até o shopping, mas nada estará aberto.
-Como assim?-já não era a voz doce, era a revolta de um estômago doído.
O moço arregalou os olhos e sumiu dentro do restaurante. Ao mesmo tempo, disparou uma sirene ensurdecedora e surgiram policiais. Não um,mas três. E viaturas, quatro delas fechando a passagem da moça faminta, agora assustada.
-Mocinha, você vem conosco agora.-fala um deles, não saberia dizer qual, não só pelo seu espanto,mas eram todos iguais. O policial falou sério, com firmeza, segurou-a pelo braço e foi conduzindo-a à uma das viaturas.
-Mas....?
-Sem mas nem meio mas!-estava realmente alterado- esses adolescentes, onde já se viu? Por isso que não tive filhos! A senhora fique calada!
Obedeceu, claro. Não ia discutir com três homens que eram duas vezes seu tamanho. O que teria feito? Foi jogada no banco de trás, entre dois deles. Ninguém falava, ninguém olhava. Quando alguém explicaria a ela o que estava acontecendo? Olha para o relógio, são duas e meia. Ouve outra sirene. Segunda sirene, começa a ouvir sons distantes, indefinidos, olha pela janela e vê pessoas saindo dos prédios- várias delas, carregando caixas, montando coisas. Terceira sirene: as pessoas estavam enfeitando as ruas!E o burburinho das pessoas ia ficando mais intenso, mais nervoso- nervosamente alegre, como um baile de papagaios.
-Quando chegarmos, levem-na direto para a cela 22. Precisamos nos apressar.
Presa, sério? Por quê, afinal? Sem coragem de falar, de perguntar, estava com medo, os policiais estavam ficando mais agitados. Estacionaram em frente a uma delegacia, três deles saíram correndo e o quarto a puxou:
-Vamos. Você não vai estragar o jogo de ninguém, nem o meu.
-Que jogo?
Melhor que não tivesse perguntado.
-Como ousa?-e a empurrou com mais brutalidade, obrigando-a a andar mais rápido.
Foi adentrando a delegacia, ainda perplexa. Presa? Jogo? E o estômago, que ainda reclamava,esquecido? Chegaram a cela 22, onde havia uma velha com um radinho.
-Você fica aí. Amanhã o Doutor Limeira cuida de você, melhor se comportar: o bicho está feio pro seu lado.
-E ninguém me explica nada? Quero falar com minha mãe, ela vai ficar preocupada!E estou com fome!
-Quieta.-falou firme, definitivamente. E virou-se para a velha, já saindo apressado: Ela é atéia, cuidado.
-Como assim atéia? Sou católica,volte aqui!
-Menina, menina, cala! De onde você é?-perguntou a velha, serenamente.
-De Bom Despacho, me explica o que está acontecendo-num tom de súplica.
A velha tirou algo de uma sacola parda: Explico, mas primeiro come. Ainda bem que guardei essa mexerica do café da manhã. E acalma. Você é mesmo atéia? Não sabe que hoje é o primeiro jogo do Brasil na Copa?
-Hã?Não mesmo. Joguei vôlei na minha cidade,mas nunca fui ligada a futebol.
-Shhhhhh!Não repete isso nem em pensamento. Aqui na capital as leis são mais rígidas em relação ao futebol. É melhor para você ficar aqui até o fim da Copa, porque se te pegam duas vezes, é pior, acredite. Falo de tortura,sabe. Estou aqui há seis anos. Na Copa passada foi feio, ficaram agressivos quando o Brasil perdeu, nem queira ver. Se o time estiver indo bem, não colocam a mão em você, torça por isso. Para sua sobrevivência, você tem de aprender a escalação, as regras e os adversários- todos eles. Não adianta saber só dos times grandes. Deixa eu lembrar o que mais...
Desconcertada era pouco. Sabia que o futebol era a paixão nacional, achava o Kaká bonito,mas só isso, não se interessava. Agora, tortura?Que tipo de tortura? Nem sabia explicaro que faz um ponta...
-Ah! Você TEM de torcer, senão fica aqui por mais tempo obrigada a ouvir o Galvão o tempo inteiro. Pode até usar palavrões, ajuda um pouco a extravazar essa farsa toda. Vou te ensinando, porque o doutor Limeira é carrasco, faz muitas perguntas e se você não sabe...Bem, não entrarei em detalhes, melhor que não passe por isso.
Ficou tonta. Atônita. Tonta. Estonteada. Esfomeada. Escotomas: verdes, amarelos, verdes, verdes. Tombou.
-Mariana? Acorda, Mariana. Estamos indo para casa ver o jogo, vamos?
Levantou a cabeça, olhou o relógio: uma e dez. Estava na biblioteca, adormeceu lendo e tinha perdido a aula.
-Jogo?Estou indo almoçar,odeio futebol.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Reflexões H

...Fulana era de uma inadequação quase poética, beirando o absurdo, e de tão pouco usual,parecia harmonioso-para os outros,claro.

................................
Conversa com o analista
-Ando sem ânimo,sabe,tem dias que tudo acorda cinza...
-Hm,é?Pois para mim também.