segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sumidades- A dádiva da merda

O pombo cagou na cabeça da criatura. Mediana, morena, iniciando o dia. Leva, portanto, excretas fartas no centro da cabeça.
Xinga. Palavras feias, indizíveis. Encoleriza. Maldiz o Criador por ter tido a idéia estúpida de permitir que seres voadores caguem. Vantagem evolutiva maldita.
Disfarça e confere se há alguém que possa ter visto a cena. Merda. Merda na cabeça, merda de pombo. Ou pomba, não pode ver. Delicadamente, confere se conseguiria retirar a sujeira. Não, está amolecida como deve ser a merda de pombo.
Decide. Voltará para casa, não há alternativa. Não pode ir trabalhar suja, ficará cheirando o dia inteiro. Além da raiva, claro. Não, definitivamente não terá condições de ir ao trabalho. Irá para casa tomar banho.
Reavalia, considera. Não pode ir trabalhar, mas ir para casa? O dia esta lindo, gostaria de ser um pombo e cagar displicentemente nas cabeças das pessoas. Dia livre, a partir de agora.
Pensa, decide. A pomba libertou-a e o dia agora é uma página em branco, originada da merda.
Vai para a estação e pega o primeiro ônibus para a praia. Lavaraá-se na água do mar, é melhor. E satisfaz-se com a dádiva da merda.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Eclosão

Por várias vezes na vida, me senti cansada. Em algumas delas, o corpo dava alguns sinais de que não gostava do meu ritmo de vida. Era o sono em horas inadequadas, lentidão em reflexos, falta de coordenação. Provavelmente, era somente o inicio da indignação do meu corpo com o tratamento que recebia . As xícaras de café se multiplicavam. Percebi que estava num momento critico há um ano, quando esqueci um compromisso inadiável. Acabei perdendo minha agenda e com ela, tantos outros compromissos inadiáveis não aconteceram.
E não importava o quanto tentasse me organizar, as minhas faltas e alienações iam piorando, acumulando, ofendendo os atingidos. Você trouxe? Você vai? Por que você não foi? Cadê? Você lembra-se da Cacilda? Não trazia, não ia, não sabia e não lembrava. Olhava no espelho por ser obrigada a trabalhar perfeitamente maquiada por cima de minhas olheiras ancestrais.
Chovia e eu perdia o guarda chuva. Estacionava e tinha de conferir se havia trancado a porta. Saia de casa e voltava para buscar a bolsa.
Acreditei ter chegado ao auge da minha autonegligência expandida ao mundo quando dei seta ao manobrar o carro na garagem de casa. Mas não. Esqueci aniversários queridos, marquei dois encontros para o mesmo horário em bairros diferentes, paguei multas de atraso. Um dia, ia sair de uma sala e bati na porta pelo lado de dentro. Sucessão de atitudes desconexas. Ia me tornando cada vez menos funcional, mais automatizada. O cansaço ia me carcomendo, retirando de mim cada fragmento que me tornava um ser social. Já não sentia. No princípio, eu ainda lutava. Ia buscar o esquecido, pedia desculpas, recompensava, refazia, tentava reorganizar.
Aos poucos, fui me desapegando.
Melhor, fui sendo desapegada. Sai do emprego, oito horas do dia a mais para mim e a libertação do espelho. Vendi o carro, uma prestação a menos para pagar e nenhum bem a zelar. Parei de ir aos grupos: os voluntários, os de oração, as reuniões de condomínio, as ginásticas e a terapia. Abandonei a faculdade e o futuro profissional, e a vida ficou livre para mim. Perdi o celular e cancelei o telefone de casa. Descalça, sai de casa e deixei a chave. Esqueci o nome dos colegas, depois dos amigos, do namorado, dos familiares e por fim, o meu nome. Esquecidos os concretos, os nomes abstratos fugiam. Como não podia deixar de ser, sublimei-me.