terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Eclosão

Por várias vezes na vida, me senti cansada. Em algumas delas, o corpo dava alguns sinais de que não gostava do meu ritmo de vida. Era o sono em horas inadequadas, lentidão em reflexos, falta de coordenação. Provavelmente, era somente o inicio da indignação do meu corpo com o tratamento que recebia . As xícaras de café se multiplicavam. Percebi que estava num momento critico há um ano, quando esqueci um compromisso inadiável. Acabei perdendo minha agenda e com ela, tantos outros compromissos inadiáveis não aconteceram.
E não importava o quanto tentasse me organizar, as minhas faltas e alienações iam piorando, acumulando, ofendendo os atingidos. Você trouxe? Você vai? Por que você não foi? Cadê? Você lembra-se da Cacilda? Não trazia, não ia, não sabia e não lembrava. Olhava no espelho por ser obrigada a trabalhar perfeitamente maquiada por cima de minhas olheiras ancestrais.
Chovia e eu perdia o guarda chuva. Estacionava e tinha de conferir se havia trancado a porta. Saia de casa e voltava para buscar a bolsa.
Acreditei ter chegado ao auge da minha autonegligência expandida ao mundo quando dei seta ao manobrar o carro na garagem de casa. Mas não. Esqueci aniversários queridos, marquei dois encontros para o mesmo horário em bairros diferentes, paguei multas de atraso. Um dia, ia sair de uma sala e bati na porta pelo lado de dentro. Sucessão de atitudes desconexas. Ia me tornando cada vez menos funcional, mais automatizada. O cansaço ia me carcomendo, retirando de mim cada fragmento que me tornava um ser social. Já não sentia. No princípio, eu ainda lutava. Ia buscar o esquecido, pedia desculpas, recompensava, refazia, tentava reorganizar.
Aos poucos, fui me desapegando.
Melhor, fui sendo desapegada. Sai do emprego, oito horas do dia a mais para mim e a libertação do espelho. Vendi o carro, uma prestação a menos para pagar e nenhum bem a zelar. Parei de ir aos grupos: os voluntários, os de oração, as reuniões de condomínio, as ginásticas e a terapia. Abandonei a faculdade e o futuro profissional, e a vida ficou livre para mim. Perdi o celular e cancelei o telefone de casa. Descalça, sai de casa e deixei a chave. Esqueci o nome dos colegas, depois dos amigos, do namorado, dos familiares e por fim, o meu nome. Esquecidos os concretos, os nomes abstratos fugiam. Como não podia deixar de ser, sublimei-me.

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