segunda-feira, 26 de março de 2012

O choro da outra

Voltava para casa depois de mais um de seus dias vazios. Saia do trabalho que não a motivava para um encontro com o namorado que não amava. E dai, para a casa que nem dela era, onde ninguém a esperava. Ouvindo covers na radio, uma farsa completa. Tentava organizar seus sentimentos, planejar as férias que com a graça de Deus, chegariam. Dirigia displicentemente, o horário tampouco fazia diferença em sua vida. Chegara a um ponto na vida que os atrasos são sempre aceitáveis e todas as presenças em todos os ambientes, dispensáveis. Pessoas esterilizadas, obviamente.


E ia. Pensando superficialmente. Em um mês, sairia do emprego que ocupava ao longo daquele ano. Sentiria saudades? Brevemente, sim. Depois, tudo se apagaria em sua mente. Vida moderna. Yeah. Conseguiria outro emprego, talvez, que a moveria por mais alguns meses, até que se estabilizasse e outra vez, perdesse o significado. E novamente, mudaria, num ciclo continuo e eterno, até que morresse como os que já morreram.

E o namorado? Se casariam em alguns anos, provavelmente. Teriam filhos saudáveis e banais, frívolos como aquela insistência em acreditar no amor, em perseguir a crença no amor. Internamente, sabia que não o amava e que era incapaz de amar. Ele também desconfiava dessa partilha do desamor, mas precisava cumprir com o figurino, ter alguém a seu lado e reproduzir. De qualquer forma, seguiam, teimosamente. E ela seguia, pensando tão somente no jantar do dia.

Viu, fortuitamente. Em seu retrovisor central, viu o rosto da motorista do carro que a seguia. Uma mulher fazia algo parecido com chorar. Contraia o rosto e secava. Lagrimas? Cantava, ria? Falava proibidamente ao telefone? Reduziu a velocidade na tentativa de enxergar melhor a motorista. Abriu sua janela e desejou que ela a ultrapassasse. Chamaria, olharia, buzinaria e a pediria para parar. Para que? Desejou. Desejou. DESEJOU com uma intensidade que há muito não existia em sua vida.

Observava a mulher. Que chorava, incontestável. Incontrolavel. Mesmo reduzindo a velocidade, a outra não a ultrapassava. Dirigia mecanicamente, mais ocupada em resolver a questão do choro.

Questão do choro, merda. Teve vontade de chorar. Ensaiou uma lagrima que mal turvou sua visão. Há quanto não chorava? Há quanto não sentia alegria ou tristeza de intensidade considerável? Resolveu que choraria. Chorou como a outra, veio a primeira lagrima plena, rechonchuda, que escorreu pelo rosto, seguida de varias outras. Rapidamente, soluçava. Já dirigia mecanicamente, também. Lembrava da falta de sobressaltos em sua vida, como era incapaz de chorar como a outra! Parou de desejar e a invejou por ter motivo que a fizesse chorar tanto. Odiou-a.

Ocorreu então que a outra a ultrapassou. Teve então a confirmação: chorava! Seu peito arquejava e toda sua face, bela por sinal, se contraia em dor. Levantava os óculos e tirava as lagrimas que o submergiam. Quase gritou: por que chora?Quer ajuda? Foi impedida pela força de suas próprias lagrimas e de sua inveja. A outra a viu, então. Num tempo milesimal, encararam-se, as mulheres que choravam juntas. A outra distraiu-se com o choro alheio e a olhou cúmplice, engraçada. Ambas chorando no trânsito, que maluquice! E retornou a seu choro, soluçando. Ela, então, pode ler na outra todo um sofrimento, e assustou-se: era amor. A outra amava. Odiou-a mais tanto que seu choro aprofundou-se. Gostaria de amar para ser capaz de chorar. Não mais queria resolver a outra, era que era feliz, que era capaz de amar e de chorar.

Seguiram, ambas, levemente modificadas pelo choro alheio. Uma, no seu realismo estéril. A outra na sua humanidade sofrível. Ambas, chorando.

2 comentários:

  1. Aposto um choro que a mulher do outro carro era Tyler Durden!

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  2. Na verdade nao. Mas poderia ser. Pensamento mais que plausível!

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